Sacrifício parte dois
O horizonte era marcado por inúmeros jazigos altos, cruzes
de vários formatos e tamanhos, anjos em lamúrias e em tamanho dos mais
variados. A morte se fazia presente por todos os lados. A noite era fria e
silenciosa, sem Lua.
Mesmo no escuro, os olhos enxergavam com perfeição.
Levantou o rosto e examinou o local com calma. Não sabia exatamente onde
estava, só sabia dizer que era um cemitério. Uma antiga necrópole encravada
numa cidade que nunca dormia. Mas estranhava o fato de tamanho silêncio.
Continuava na cidade mesmo ou ali era algum outro lugar que ela não conhecia?
Levantou. Observou o túmulo de pedra de mármore cinza onde
estava sentada. Saltou para o chão cheio de pedrinhas e caminhou pelos
corredores sombrios daquele santuário dos mortos. Ao longe, havia uma capela no
que parecia ser o centro do cemitério. Seguiu até lá e encontrou as portas
fechadas. Mas havia algo lá dentro que lhe chamava atenção. Aquela luz
bruxuleante de velas acessas. Teria alguém ali?
Deu a volta na construção pequena, porém alta, quase
redonda. Nitidamente uma construção antiga, estilo gótico. Porta e vitrais em
ogivas. Subiu a escadinha de aceso com três degraus altos, balaústres bem
desenhados e duas sentinelas monstruosas de cada lado. Aproximou-se da porta e,
quando iria bater nas folhas de madeira, elas se abriram em duas, cada parte
para um lado, mostrando o espaço pequeno que havia ali. As duas velas negras
estavam no chão, aos pés do trono dourado que vira outrora, em um momento não
muito distante. A abóbada alta ostentava dois lustres redondos com velas pela
metade. E ele estava lá, vestido de preto, os olhos esmeraldas e o rosto oculto
pelo capuz medieval. Logo, ela se lembrou do que se tratava.
Adentrou a capela que estaria vazia, não fossem as velas, o
trono dourado e o tal homem misterioso sentado ali. Na verdade, descobriu uma
mesa alta de madeira onde imaginou que ali fosse colocado o caixão para a missa
de corpo presente. Arrepiou-se ao imaginar as tantas missas que já foram feitas
ali. Talvez, a sua própria.
O Homem manteve-se em silêncio em sua posição tradicional,
onde uma mão apontava para cima e a outra para baixo. Ficou assim até que ela
se aproximasse. Ela tocou a mão dele e se ajoelhou, beijando a mão que tomara
entre as suas.
- Bem vinda, Lilith.
Ela ficou ali, ajoelhada, olhos baixos. Não entendia ainda
tudo aquilo que estava acontecendo com ela. Tinha sido oferecida para um
casamento que ia contra todas as leis ortodoxas as quais fora criada. Não
conseguia aceitar que tinha sido oferecida pelos próprios pais.
- Não vá remoer isso para o resto de sua existência, bela
garota... És minha agora!
Ela continuou ali, ajoelhada. Ergueu os olhos para ele e
continuou em seu silêncio reservado.Só desviou o olhar ao ouvir as portas
fecharam atrás de si. A escuridão só era quebrada pelas velas erguidas na
abóbada alta e aquelas duas aos pés do trono. Sons de correntes e ferrolhos se
fizeram ouvir. Era algum portão que estava se abrindo. Mas, num espaço tão
pequeno quanto era aquela capela sem imagens e altar, onde se esconderia uma
passagem?
Um vento forte apagou todas as velas e o chão sumiu. Ela
sentiu a queda livre e o frio na alma ao cair sem saber para onde. Sentia o ar
denso, os cabelos soltos voando para trás. Estava ao léu, caindo na escuridão.
Nenhum anjo apareceria para salvá-la? Nenhuma de suas lamurias seriam ouvidas?
Ela era tão perdida que não poderia ser lembrada? Estaria tão perdida assim?
Clamou por todos os deuses aos quais se lembrava. Clamou,
principalmente, por aquele Ser Maior que sempre rezara e lia, mas tudo parecia
inútil! Nenhuma ajuda, nenhum socorro. Apenas a queda para o vale das sombras,
o recanto da morte.
Quando, enfim, sentiu o chão, percebeu que não havia
morrido na queda. Já estava morta! Ainda era difícil entender que sua alma
havia sido corrompida, vendida. Seus pais... Seus próprios pais a ofereceram ao
tinhoso, aquele ao qual sempre pediram para estarem livres. Iam todos os
domingos à Igreja, pagavam o dizimo, ajudava nas obras. Sua mãe a convencera em
frequentar a catequese, deveria ser pura até o dia de seu casamento. E tudo o
que recebia em troca era isso? O inferno? Mesmo sem pecados, mesmo com uma vida
de obediência aos pais e ao Senhor, era assim que permaneceria na eternidade?
Casada com um demônio?
Levantou-se vagarosamente e não conseguiu ver nada ao seu
redor. Havia cheiro de podre e enxofre. O primeiro passo afundou em uma poça
mal cheirosa, lamacenta. E assim era todo o chão pelo qual caminhou. Era lodo e
excremento juntos. Ouvia como se fossem galhos quebrando, mas sua mente
amedrontada imaginava as mais bizarras cenas naquele lugar.
Ao longe, ela podia ouvir gritos chorosos, pesarosos,
clamando por ajuda e salvação. Ouvia-se pequenas explosões e gritos ainda mais
altos acompanhavam-nas. Logo foi possível ver o horizonte alaranjado. Não tinha
certeza, mas pensou ser a luz das tais explosões. Assim, resolveu seguir na
direção da Luz ao longe.
Realmente havia as tais explosões. Vinham do chão, como se
pequenos vulcões em erupção. Via-se almas levantando junto das chamas,
misturados em brasa e carne, numa coisa só. O cheiro de podridão era intenso,
nauseante. E ela seguiu adiante até encontrar aquele enorme prédio sujo,
perfeitamente retangular na horizontal, lembrando a mesma arquitetura usada no
MASP. O vão entre o prédio e o chão era escuro, vazio e ecoava os passos por
aquela imensidão de trevas. Uma escada subia em caracol. Balaústres retos e sem
desenhos, sujos, enegrecidos. Ela subiu, não tocando o corrimão. Não havia
iluminação nenhuma e ela ia pé ante pé, temendo tropeçar nos degraus.
Quando adentrou o salão guarnecido em total escuridão, ela
conseguiu reconhecer a silhueta ali em pé. Era ele, sorridente, envolto em uma
luz própria que vinha do centro da cabeça, dentre os chifres altos e encurvados.
Seu rosto não era monstruoso dessa vez. Ele era lindo! Os olhos esmeraldas
brilhavam e seu sorriso era perfeito, alvo e os dentes de vampiro
protuberantes. O terno bem cortado, alinhado, modulando o corpo perfeito
daquele Ser.
- Bem vinda à nossa casa, bela garota!
Lilith estava com um vestido preto, rente ao corpo, mas só
agora ela percebera isso. O decote em v deixavam os seios fartos à mostra. Os
cabelos longos e volumosos caiam sobre os ombros desnudos.
- Hoje vou te dar um presente, Lilith.
Ele segurou a mão dela e seguiram juntos até além das
portas altas de ouro. Toda a extensão daquele prédio estava na escuridão, só
era iluminado quando eles passavam devido aquela luz que ele mesmo emanava.
Os corredores eram longos e o pouco que ela podia ver era
aterrorizante. Havia cabeças pela parede, crânios expostos em sua alvura de
ossos polidos. Eram crânios estranhos, pouco semelhantes aos que conhecemos.
Imaginou ser de todas as Eras já vividas pela humanidade. De súbito, ele parou
e apontou um dos crânios na parede.
- Este é de alguém muito interessante... – ele sorriu. –
Escariotes... Lembra-se dele?
Ela se aproximou e tocou o crânio do maior dos traidores da
história da humanidade. Olhou para o homem ali ao seu lado, que sorria ainda.
- Cada um desses tem uma história. Mais adiante, na curva
que faremos, você verá o de Hitler. Adoro essa minha coleção particular. As
almas amigas que estão comigo até hoje! Jamais deveriam dizer que eu sou o mal.
Pensando por um lado bem Humano, eu deveria ser tratado melhor que o Senhor
Divino, já que quem faz a verdadeira justiça sou eu. Cada pessoa cruel que
morre vem pagar as contas aqui comigo. Se eu dou jeito naquele que foi ruim em
vida, eu sou, então, aquele que reabilita o Ser, não acha?
A sua gargalhada ecoou por entre os imensos corredores
escuros e continuaram sua caminhada trevosa. Não demorou muito e eles chegaram
naquela imensa porta. Sua altura era a de um prédio de cinco andares e sua
largura era a de um campo de futebol. Lilith sentiu a respiração faltar quando
terminou de medir a porta com os olhos.
- Chegamos Lilith!
Um barulho ensurdecedor ecoou e a ventania que saia de
dentro da fresta aberta era realmente muito forte. Lá dentro, um imenso
labirinto de paredes de barro.
- Mas o que é isso? – ela indagou.
- Seu presente. – ele sorria. – Vou te dar uma oportunidade
única, Lilith...
Quando ela olhou aos lados, percebeu que estava sozinha.
Apenas ela e o labirinto de barro. Não havia mais aquele homem consigo, não
havia mais a porta, não havia mais nada. Seguiu adiante e adentrou o labirinto.
Lá dentro era frio e ela tremeu. Não podia ver um palmo a sua frente. Caminhou
em passos lentos, medrosos. Não tinha ideia do que lhe aguardava ali dentro.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuitoooo legaaal ja me deixou com gosto de quero mais. Aguardando a continuação. Gostei muito do geito que vc escreve Thiago. bjs
ResponderExcluirQueria ler o que "Mago Márcio e Bruxa Ester" havia comentado...
ResponderExcluirEtherys, muito obrigado por comentar! Veremos se ainda continuarei escrevendo...
Thiago!!Agora acho que a história tomou um rumo próprio! antes falei da primeira parte que parecia uma versão para a história de Lilith. Com esse desenvolvimento e conteúdo o texto está super interessante!! adorei o ar misterioso para a nova continuação:"...Não tinha ideia do que lhe aguardava ali dentro." rsrs'
ResponderExcluirImagine quando isso virar livro... Tá um espetáculo guri! Muito bom!
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