The Sacrifice.
O breu tomava conta do salão extenso e
cheio de cadeiras. Havia apenas as sombras dos que ali estavam sentados. O
capuz pontudo, triangular. Só era possível ver a silhueta dos convidados. Havia
um altar três degraus mais alto do corredor que se abria entre as cadeiras, posicionadas
metade no canto direito do salão e a outra metade no canto esquerdo.
A porta se abriu violentamente. Uma Luz
vermelha vinha lá de fora, adentrando o salão escuro e fazendo possível ver
aquele que estava sentado em um trono dourado posicionado na frente do altar,
abaixo dos degraus. Vestido em preto, cabeça coberta com aquele capuz de
carrasco medieval. Só era possível ver seus olhos verdes esmeralda. Atrás dele,
o enorme crucifixo de Cristo presente, pregado e lamentoso em sua quase morte.
Os olhos tristes, as feridas em carne viva, o sangue que escorria de suas
chagas, a coroa de espinhos ensopada em rubro quente. Entre a cruz e o trono
dourado, havia o Padre. Batina negra, estola roxa, cruz de madeira nas mãos e
os olhos vendados com uma fita vermelha de seda.
Dois homens nus adentraram o salão
segurando um par de velas negras cada um. Não por coincidência, eram eles dois
negros também. Tinham apenas a cabeça coberta por aquele mesmo capuz pontudo e,
no peito, ostentavam uma argola prateada presa em uma grossa corrente que
pesava no pescoço. O membro semiereto balançava livre entre as pernas e tinham
as mãos sujas de sangue.
Em seguida, outros dois homens vestidos
com o que parecia ser uma burca preta afegã, adentraram o salão puxando uma
corrente grossa cada um. Estavam trazendo algo com eles, mas ainda não era possível
ver do que se tratava. A Luz da Lua brilhava nas correntes, o que aumentava
ainda mais a morbidez e o suspense daquela cena que parecia transcorrer em câmera
lenta.
Mas logo foi possível vê-la entrar. O
vestido imenso, vermelho, espalhava-se pelo chão. Seu rosto tenso, os olhos
chorosos, a boca amordaçada, a cruz invertida pendurada em seus seios fartos,
os cabelos longos e encaracolados cobrindo-lhe os ombros como um véu castanho.
Tinha as mãos atadas pelas correntes que se enrolavam por todo o corpo, tal
como uma serpente enrolada em sua presa, e que os dois homens de burca puxavam.
Ela lutava para não seguir adiante, mas, atrás dela, duas moças nuas espetavam
suas costas com um instrumento de tortura nada ortodoxo.
Quando chegaram ao centro do salão, o
misterioso homem que estava sentado no trono dourado levantou. Não demorou, e
todos os outros fizeram o mesmo. O farfalhar das roupas ecoou pelo salão
escuro, o que assustou ainda mais a pobre garota, que continuava sendo puxada e
levada para dentro.
A escuridão logo tomou conta do salão
mais uma vez. A porta havia sido fechada e a luz vermelha se intensificou lá dentro
em questão de segundos. Assim sendo, a escuridão deu lugar à vermelhidão
sobrenatural e profunda. Tudo estava como num pesadelo. Silhuetas de pessoas
vestidas de carrascos, aquele altar estranho, aquele homem misterioso sentado
num trono dourado... Aquilo não era uma Igreja, era possível perceber pela
estrutura do local. Não tinha cara de Igreja, nem vitrais, nem imagens, nada!
Era apenas um salão sem janelas e arrumado para parecer com o altar de uma
Igreja.
Quando próximos do trono, a garota foi
jogada aos pés daquele homem, agora em pé. Os olhos verdes fixaram-se nos olhos
da menina acuada e temerosa. Só agora que ela percebera aquele buquê de flores
mortas em suas mãos. Ele parecia estar colado entre seus dedos, pois não havia
caído quando fora atirada ao chão.
Quando olhou aos lados, já não havia
mais ninguém no salão, apenas ela caída, ele em pé e o padre no altar. Na
verdade, as pessoas ainda estavam lá, mas a iluminação não deixava nenhum deles
visível.
A garota olhou, mais uma vez, para
aquele belo par de olhos esmeralda. Ela queria gritar, mas a mordaça não
permitia muito mais do que baixos murmúrios sôfregos e esganados. Os movimentos
eram limitados devido as correntes. Conseguiu se levantar com muita dificuldade
e encarou o homem que antes sentava no trono dourado de frente.
- Não tenha medo, bela garota...
Lágrimas escorriam dos olhos dela. Olhos
negros, brilhantes. Estava apavorada. Não sabia onde estava e o que poderia
acontecer. Estava vestida para casamento, mas o vestido era vermelho. Havia um
buquê, mas as flores estavam mortas. Os convidados estavam na escuridão, o
Padre estava vendado e o que era aquele homem vestido de preto, num trono
dourado e o rosto escondido em um capuz de carrasco medieval?
O homem do trono dourado virou para o
altar. Bateu palma três vezes e ouviu-se um farfalhar de roupas em meio à
escuridão. Ele sorriu.
- Pater... – ele gritou, e sua voz ecoou
pelo espaço que parecia vazio. – Inchoare ritu.
O Padre se moveu, pegando algo na mesa
do altar. Levantou o objeto que a garota não conseguia ver direito o que
poderia ser. Quando ele ficou de perfil, ela percebeu que era um atame. O Padre
levantou o atame dizendo: In nome Patris...
E depois se curvou para o lado direito dizendo: et filli... E virou para a esquerda: et Spiritus Sanct... E devolveu o atame ao altar: Amen!
O homem do trono dourado voltou-se para
a garota. Os olhos dele sorriam. Ela queria correr, mas não sabia se
conseguiria. As correntes eram barulhentas e machucavam seus pulsos. Ele
estendeu a mão para ela.
- Venha até aqui, bela garota. Suba.
Ela remexeu-se, olhando aos lados à
procura de um socorro qualquer, um milagre talvez, ou alguma pessoa sã que a
salvaria. Precisava acreditar que aquilo não era real. Mas nada acontecia para
acabar com aquele pesadelo lúgubre e sombrio.
- Ora, bela garota... – ele riu. – Venha
logo!
Ela deu alguns passos para trás, o que
fez ele rir ainda mais. Ele desceu alguns degraus e, quando ela ia correr,
sentiu-se puxada pela corrente. Na escuridão, alguém ainda segurava aquelas
correntes que prendiam suas mãos. Ela quase caiu, mas conseguiu se manter em
pé.
- Isso está ficando cada vez melhor. –
ele riu, mais uma vez. – O que vem fácil, vai fácil também...
Ele se aproximou dela, que chorava
copiosamente sentindo as mãos doerem. Ele passou as costas da mão enluvada no
rosto dela e desceu até o pescoço, passando pelo ombro e chegando aos seios
fartos, apertados no vestido com corpete bem amarrado. Ele acariciou os seis
alvos dela e riu.
- Mas foi mesmo uma ótima escolha essa a
minha, não acha?
Ela não respondeu, apenas calou-se em
seu choro sentido. Queria acordar. Precisava acordar e ver que tudo não passava
de um terrível pesadelo!
Sem nenhuma piedade, ele agarrou o braço
dela e a arrastou até próximo ao altar, bem ao lado do trono dourado onde ele
estava sentado antes. O Padre estava imóvel, aguardando o comando daquele homem
misterioso.
- Permanebit com ritu.
O Padre, que tinha aquela venda de seda
vermelha nos olhos, curvou-se para pegar algo no altar. Era o cálice dourado,
que ele ergueu e disse:
- Hoc est sanguine.
E devolveu o cálice ao altar. Logo, ele
ergue outra coisa que deixou a garota de olhos arregalados. Era algo
relativamente pequeno, que cabia na palma da mão daquele Padre. Era meio oval,
talvez, e avermelhado. Era um... Coração?
- Hoc sunt symbolum peccatum.
Símbolo do pecado? Ela respirou,
aliviada. Era apenas uma maça.
Então, ele segurou a mão da garota ao
seu lado e subiram os degraus, aproximando-se mais do altar e do Padre. Quando
ajoelhados ali, o Padre pediu a mão direita de cada um. Ela relutou, mas ele
puxou o braço dela e estendeu a mão aberta sobre o altar. Num movimento
rápido, o Padre levantou o atame e cortou a palma das duas mãos ali estendidas.
O sangue brotou quente da mão dela, de forte rubro brilhoso. Da mão dele, era
algo grosso, meio cinzento. Enfim, o Padre uniu as duas mãos e, enquanto
segurava as duas, ainda juntas, disse:
- Et sic fecit unio Baphomet cum hoc pulchra virgo.
De súbito, o som do órgão encheu o salão
e um coral melancólico cantou um réquiem mais sombrio do que o comum. A garota
olhou para os lados, mais uma vez, na esperança de que, finalmente, alguém
fosse aparecer. Não podia ser real. Aquilo o que ela ouvira não podia ser
verdade! Havia se casado com Baphomet! Então, aquele par de olhos verde era um
demônio?
Ouviu-se um ruído. A princípio, pequenas
pedras rolando. Logo, o teto se abriu por completo e as paredes caíram. Uma
nuvem de poeira se levantou, tomando conta da visão dela por longos minutos.
Estava realmente sozinha agora. E estava sem as correntes, sem o buquê de
flores mortas. Estava livre? Sorriu, imaginando que havia despertado, enfim.
Estava acordando daquele pesadelo terrível! Não conseguia imaginar como fora
parar naquele lugar, mas estava aliviada de saber que estava tudo bem, que
poderia ir para casa.
Quando deu o primeiro passo, o pesadelo
voltou a existir. Uma labareda subiu a sua frente e, vagarosamente, foi criando
um grande círculo em torno de si. Seus olhos ardiam em chamas, tais como as que
a cercava. Ela não estava livre, nunca mais estaria! Aos seus pés, viu o capuz
negro de carrasco medieval. Segurou-o e procurou aos lados. Onde ele estava?
Dentre as chamas, viu a silhueta
estranha surgir. Os chifres curvados, o rosto comprido e o corpo esguio, braços
longos, e a parte debaixo escondida numa espécie de saia vermelha. No céu, a
Lua se fez visível, lindamente em seu estágio crescente. E foi assim que ele
surgiu, sorridente, braços erguidos, como quem pede um abraço de boas vindas.
- Sua vida de pecados lhe trouxe até
mim, bela garota. – ele disse, enquanto uma cobra envolvia-lhe a cintura. – Pra
que tu lê aquele livro, se não o segue, sua tolinha? Pra que resguarda teu
corpo, que por mim será profanado? És minha agora, por obra do destino. Assim
quis tua mãe e teu Pai, em troca de poder absoluto! Agora choram sua morte,
enquanto eu a tenho em meus braços. É um belo pagamento, não achas?
Ela arregalou os olhos, temendo o que
acabara de ouvir. Sentiu a barriga doer e surpreendeu-se ao levar a mão até
aonde doía. Estava sangrando, ensopando o vestido que já era mesmo vermelho.
Ela curvou-se de dor e caiu ajoelhada na terra arenosa. Vomitou e viu sangue
sujar o chão. Olhou para cima, e lá estava ele, erguendo-lhe a mão.
- Venha comigo para toda a Eternidade...
Mais uma vez ela vomitou sangue e caiu
em cima dos dejetos. Ele riu e a empurrou com o pé.
- Não sofras... Venha comigo... Ande
Lilith. Levante-se!
Neste momento, a terra estremeceu e um
forte vento surgiu, formando um rodamoinho, apagando o fogo que formava aquele
círculo onde estavam. Era como se vermes e insetos levantassem do chão e
possuíssem o corpo daquela garota ali estendida. Logo, ela se ergue.
- Estou pronta! – ela sorriu, dentes
perfeito e o rosto lindo daquela jovem estava intacto, assim como a barriga que
não sangrava mais.
Ele sorriu e estendeu o braço, servindo
de companhia para Lilith. Essa seria sua vingança por anos de dor, solidão e
lágrimas que nunca ninguém reconheceu. Sempre esquecida, deixada de lado, sem
respostas, somente suas dúvidas sem fim. Seguiram pelo terreno espaçoso, em
direção ao nascer do Sol. Era o começo de uma Nova Era.
Muito bom! parabéns pelo texto.
ResponderExcluirThiago eu amei o conto que você escreveu, inspirador, profundo e consegue passar uma mensagem muito clara, principalmente as conclusões finais. Eu gostaria muito que você continuasse a escrever este conto. Você poderia escrever o que aconteceu antes pra que se resumisse ao destino dela final. Quem sabe não acaba se tornando um livro. Parabens você é talentoso e valeu a pena ler. Quando tiver mais coisas me manda. Um beijo
ResponderExcluirDe: Etherys Succubbus
Incrível! Não é um seguimento original de ritual, isso é um fato absoluto, mas descreve tal como um de fato. Poderia, quem sabe, até ser um ritual escondido, secreto, talvez? Adorei a escrita profunda e detalhista. Mandou muito bem, realmente. E concordo com a Etherys: Ficou clara a intenção do conto. Continue sempre! E que o Grande Arquiteto preserve suas mãos.
ResponderExcluirMagnifico o contexto e as historia em si,soube encaixar muito bem as palavras em latim.. Ficou perfeito o que pode ser dizer de um grande rito.Lilith se enconcaixou perfeitamente na historia,Gosteida escrita , que por sinal foi viva e muito detalhista ,Espero que continue assim pois Torço por thi !!!
ResponderExcluirJanTodd!tu criou uma versão para a história de Lilith, depois q disse o nome dela, que fui assimilar a maçã e a serpente envolvendo-a! O conto está muito bom, rico em detalhes! rsrs'
ResponderExcluirBom, como eu disse, hoje não sairá mais do que um comentário, mas no fim das contas quem sou eu pra fazer críticas?!
ResponderExcluirEstá incrível, é como se tivesse estado lá, e não é isso mesmo que queremos passar como narradores? Convencer leitores de que nos estivemos mesmo? E não só isso, leva-los por instantes juntos conosco... Bem Thiago Assoni, eu não sei onde você esteve está tarde, eu estive em um mundo oculto.
parabéns pelo blog ^^
ResponderExcluirFiquei totalmente apavorado. Amo os detalhes que vocÊ faz toda questão de destacar.
ResponderExcluirParabéns! Está perfeito!
Angustiante e envolvente!
ResponderExcluirgostei do texto meio parecido com meu texto garota de ipanema mais sem o padre, sem calice, sem um monte de coisas
ResponderExcluirgostei original
Excelente texto! Me prendeu desde a primeira linha! Parabens
ResponderExcluirMuito bom! O final me lembrou MUITO mas muito mesmo a música "Lúcifer" do Blutengel
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