terça-feira, 12 de abril de 2016

Cellophane - Conto - por: Thiago Assoni


O mundo girou num instante, os pés voavam soltos sem sentir mais o chão abaixo deles. Explosões coloridas encheram seu globo ocular, criando ondas infinitas e todo um universo diante de si. Não tinha mais domínio próprio, a música domava cada um de seus movimentos ensandecidos e alucinados.
Um mundo interior se descortinou em meio a sua dança frenética, mas não compreendia o que se passava. Um turbilhão de sentimentos, emoções e sensações... Não eram as drogas ou bebidas, era algo incrivelmente superior a tudo o que já conhecera antes. Nada seria capaz de descrever aquele instante.
Viu-se num emaranhado de pequenos pontos luminosos, estrelas que pendiam em um véu negro do céu da noite. Tentava parar o corpo, mas já não era mais obedecido. Perdido na mágica da alucinação temporária.
Luzes lilases enchiam seu campo de visão, fazendo tudo sumir por alguns instantes. Um funil imenso em preto e branco foi levando seu corpo para outra estação, um novo mundo para ser desvendado.
A vibração das notas musicais gritavam em sua pele arrepiada. O impacto do som contra cada parte de si só elevava seu interior rumo ao portal transcendental que flutuava não muito distante.
Nuvens fofas de algodão amparavam seu peso zero, olhos piscaram por todos os lados – apenas olhos soltos e sem rosto que pendiam no vazio do lugar de azul anil brilhante.
Uma luz amarelada que se assemelha à luz do sol se fez ver, mas não era possível notar de onde vinha, qual era sua origem. Havia apenas o existir, não mais o querer. As vontades estavam distantes, o poder não era possível.
Passou pelo portal iluminado e o infinito girou dentro de si sem parar. Seres que voavam por todos os cantos, não havia céu nem terra, somente todo o espaço sideral em descompasso.
Aos poucos, notou que despencava. O frio na barriga, a falta de ar, a pressão craniana, ataque cardíaco... Seus olhos se remexeram, tirando o foco da visão e, enfim, sentiu o chão frio nas costas, o rosto úmido e as mãos formigando. A audição falhou, a música emudeceu.
O mundo parou de girar. Abriu os olhos e encarou a lâmpada fluorescente que pendia no teto tosco e cheio de infiltrações, blocos de isopor soltos na base de ferro cinza. Pendeu a cabeça para o lado e só então percebeu estar num quarto de hospital. Soro, batimentos cardíacos, maca, lençóis brancos...
Um sorriso débil lhe enfeitou o rosto. Sua cabeça ainda girava no infinito de outrora, mas sabia que o corpo já não mais pertencia àquele lugar além-mundo. Estava de volta à horda de zumbis alienados e perdidos. Estava de volta ao que chamam de mundo real. 

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"Êxodo" - Conto - por: Thiago Assoni.



Parado, olhando para meus olhos de vidro no espelho sujo e com uma lasca solta na ponta direita da parte de cima, notei que não era mais meu rosto que via naquele reflexo desfocado e triste.
Um sorriso em risco reto, olhar vazio e sem brilho. Meus fantasmas todos sobrevoando uma nuvem negra sobre minha auréola enegrecida. A lâmpada piscando por conta da fiação precária, azulejos antigos e de um azul gasto e manchado...
Tentei sair daquela situação por tantas vezes que meus braços já nem se erguiam mais, cansados demais para lutar contra o que quer que fosse. A pia servia como apoio, a única que ainda o fazia.
Respirei fundo e fechei os olhos, perdendo meu contato visual com um falso eu no espelho. As formas disformes da escuridão já não me botam mais medo, naquele pavor infantil de outrora... Ah, se todo o mal fosse a penumbra da noite, aquela que sempre temi...
As trevas agora são outras!
Habitam corações e não espaços onde eu possa estar. Não é o escuro do meu quarto que me faz tremer, mas o pretume de algumas almas, o vazio de alguns sentimentos. O encanto que se faz ausente; a alegria enferrujada; a gentileza que jaz sob sete palmos de arrogância...
Sinto falta do meu medo da noite, dos temores infantis. Hoje, triste, me assisto me tornar aquele mostro que sempre repudiei... Pior que isso: decepciono-me ao perceber que não me importo...
Abro os olhos. Encaro aquele eu desconhecido, minhas formas ficando disformes para mim, enquanto me perco na escuridão daquela noite, nos meus medos, na minha penumbra...
Viver para sonhar...

Morrer para despertar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Liberté - por Thiago Assoni


Girava e girava numa dança sem música,
sentindo o vento no rosto,
os cabelos bruxuleando naquele ritmo sem som.
O céu azul, as nuvens de algodão,
o verde da grama aos seus pés descalços.
O vestido branco se erguia levemente,
mostrando a perna magra e ferida em linhas retas e horizontais.
Os braços eram um emaranhado desforme o ar,
indo para lá e para cá, sem nexo.
Era perfeita por fora, visto aos olhos desconhecidos.
Tão bela, tão serena.
Frágil e dócil, era aquela menina.
Olhos fechados,
boca fina e num meio sorriso.
Não sabia se estava triste ou alegre,
se dançava ou agonizava.
Estava apenas ali de pé, no meio do parque.
Seria louca a menina dançante?
Não havia som algum para estar rodopiando assim...
Onde estava aquela menina?
De súbito caiu.
Convulsionou.
Tremeu no chão e parou.
Enfim seus lábios sorriram,
os olhos se abriram
deslumbrou o azul do céu.
Livre.
Desperta.
Viva.
Foi-se para se libertar.
Despertou do sonho que era estar viva.

Umbral. - por Thiago Assoni


Eram imensas aquelas asas negras que pairavam por sobre mim, encobrindo um azul que não era azul. Aos meus pés, água negra como petróleo e tão densa que lembrei de como ficava uma gelatina no meio do processo de endurecimento.
Árvores enormes erguiam-se aos céus, aquele céu que eu não conseguia deslumbrar como um dia foi possível. A ave estava ali, me observando. Os olhos brilhantes e vigilantes, paralisados. O bico formoso e tão negro como a água, ou como a própria penugem.
Algo sobre meus ombros pesavam. Eram as garras afiadas que afundavam em minha carne, o sangue escorrendo livre. Era um mar vermelho que descia minha pele alva, gélida.
Meus olhos fixaram ao longe, incapaz de distinguir as imagens que se construíam aos poucos bem ali, não muito longe. Uma moça esguia, esquelética, tão frágil vinha surgindo, subindo o morro íngreme e escorregadio. Sua cabeça girava no próprio eixo, mas era diferente...
Eram duas cabeças. Uma das faces me olhou séria, nariz franzido, como um felino em ataque. A outra face, entretanto, tinha não uma boca, mas um risco curvado para baixo, como se um sorriso cortado ao contrário. Era como ver o mundo em câmera lenta, mas ela não. A moça caminhava em diferentes velocidades, mas todas ao mesmo tempo. Havia um contorno que vibrava em outra frequência, quebrando a aura ao redor dela.
Os olhos da face triste eram imensos, um oceano profundo. Senti vertigem ao fixa-lo. Enquanto os olhos da face em ódio eram rasos, frios e sem brilho. Como uma serpente dançante ela continuava vindo até mim.
Ouvi sons de trovão, mas soube o que era no momento em que ergui meus olhos. A ave levantou voo, sumindo na escuridão do céu que não era mais azul. Não senti o ar em movimento com sua partido, nada além do som ensurdecedor do bater de asas.
Vagarosamente as árvores se curvaram tal como a cera de uma vela quando o fogo aquece demais. Em segundos, não havia mais nada. Até mesmo a água negra recusou, como se fosse absorvida pelo terreno esburacado.
Ela parou na minha frente, o par de cabeças me observando. Compaixão, indiferença. Temor e ódio. Desejo e nojo.
Suas mãos me tocaram e senti como uma corrente elétrica em cada nervo meu, correndo por todas as minhas veias como fiação clandestinas mal interligadas. Talvez fosse apenas o efeito colateral, mas senti o mundo inteiro tremer. Terremoto que saía de mim e escoava por todos os cantos do planeta.
As cabeças pararam e, de súbito, eram uma só. Quatro olhos enfileirados me observavam e notei a penugem negra na extensão dos braços dela agora. As unhas amareladas semelhantes às garras que sentira no meu ombro. Era tudo parte de uma coisa só.
Algo serpenteava minhas pernas, unindo-as. Olhei para baixo e estávamos em fusão. Ela era um espectro negro que deslizava e subia por sobre mim, tomando-me, preenchendo as lacunas que sentia dentro de mim. Era um veneno que me completava, a loucura que me fazia são.
Um grito ecoou em minha mente, alto demais para suportar e me manter em pé. Caí e senti o gosto de sangue em minha boca, a sujeira do chão em minhas mãos, as luzes piscando em meus olhos, o mundo criando e se desfazendo em milhões de formas.
Entorpecido, um último espasmo, meus olhos se retorceram. Os intervalos de luzes brancas diminuíam. As vozes vinham aos poucos e o cheiro familiar invadiu meus sentidos, fazendo-me saber exatamente onde estava de novo.
Respirei profundamente, vendo o vulto negro daquela mulher de duas cabeças sumir por aquele vale escuro e sombrio. Senti o braço sendo perfurado, um líquido me queimava as veias e me fazia mais lúcido, trazendo-me de volta ao mundo real que eu tentava escapar.
- Deixem-me partir! – supliquei na vã tentativa de voltar ao vale negro de outrora. Eu não temia aquele lugar, eu o desejava, eu o criara. Era meu refúgio, era onde eu queria estar...

sábado, 5 de dezembro de 2015

Distopia. - por Thiago Assoni


O céu acima de mim era negro e poucas bolinhas brilhavam lá ao longe, o que imaginei serem estrelas... não eram.
Ao redor, tudo era destruição. Carros por sobre carros, prédios eram apenas esqueletos de algo que um dia fora formoso, alto e imponente. Dava pra ver os móveis lá dentro ainda, ou o que restara deles.
Examinei tudo com calma. Olhei aos lados mais uma vez e só agora notei estar sentado em um tipo de maca metálica, fria, no meio do nada. Aquele teto que via era apenas uma cobertura furada com o que imaginei ser perfurações de algum tipo de arma de fogo. Ou teria sido algum tipo de chuva de meteoritos? Chuva ácida, talvez?
Eu não sabia de mais nada!
No horizonte, fumaça negra subia de algum lugar muito distante. O céu era escuro no centro, mas aos lados havia uma faixa alaranjada, como se fosse final de tarde.
Onde eu estava?
Levantei e percebi que estava descalço. Toquei o chão e senti as pedrinhas pontiagudas machucarem meus pés. Estava ventando frio e o vento vinha de todos os lados. Um som agudo persistia ininterruptamente, enchendo todo o silêncio sepulcral.
Não via nenhum vestígio de vida humana. Insetos, por sua vez, via aos montes. Baratas imensas e cascudas corriam de um lado para o outro, moscas de proporções que nunca imaginei pareciam besouros. Entretanto, não aspirei nenhum odor fétido. Não havia cheiro de morte, apesar do cenário caótico. Também não notava corpos entre os entulhos.
Era apenas um mundo destruído. Como se nunca houvesse vida antes, apenas construções retorcidas e alguns automóveis jogados de um lado para o outro.
Mesmo sentido as pedrinhas cortarem meus pés, caminhei até próximo de um ônibus escolar, daqueles amarelos que só tinha visto em filmes... Temia encontrar, finalmente, corpos mortos e todo meu corpo tremeu com a cena que minha mente criava.
Pé ante pé me aproximei. Silêncio, mas o som agudo que vinha de algum lugar permanecia ali junto ao medo do que poderia encontrar dentro daquele ônibus.
Respirei profundamente e não identifiquei cheiro ruim algum. Dei a volta e encontrei a porta aberta. Estiquei a cabeça para dentro e tudo estava vazio. Os bancos estava limpos, imaculados. Os vidros, ao contrário, enegrecidos com a poeira grossa que descia lentamente dos céus.
Sentei na escadinha de acesso e observei aquela cena: destruição. Uma névoa densa vinha descendo vagarosamente, tomando o quadro à minha frente. A poeira se misturava e o ar estava difícil de respirar. Senti meu peito chiar, pesado com a respiração.
Uma mistura de sentimentos me tomou naquele instante. Não sabia ao certo o que se passava. Sentia falta, mas não lembrava exatamente de quê. Tudo ali parecia outro mundo, como se minha memória buscasse algo de séculos atrás.
O que estava acontecendo?

***

Tempos caminhando, meus pés já não suportavam mais. Avistei o que havia sido um playground e fui até ele. O gira-gira continuava girando com crianças fantasmas, pois não havia ninguém sentado ali para que continuasse fazendo-o girar. Os balanços iam e vinham sozinhos, no ritmo cadenciado do vento que soprava de todos os cantos. Sentei em um dos balanços e deixei-me ir e vir vagarosamente. Fechei os olhos e deslumbrei o que poderia ter sido aquele lugar tempos antes.
Risadas infantis se fizeram ouvir e abri os olhos. Parei o balanço com os pés machucados e deixei-me observar novamente aquele parquinho. Vi o carrinho de pipocas com o vidro quebrado e a pintura gasta; vi uma toalha xadrez que pendia de um galho seco da árvore morta; a quadra esportiva sem trave, ou rede, ou nada que lembrasse uma quadra esportiva, não fosse a estrutura básica de arquibancadas e o retângulo de concreto...
Eu sentia um resquício de vida por ali, naquelas formas suaves e com alguma cor que restara. Os brinquedos de ferro retorcidos ainda deixavam um colorido sujo, enferrujado. O fim não parecia ser o final.
Cansado, suspirei e apoiei a cabeça na corrente do balanço. De soslaio, notei algo no chão ao lado. Surpreso, precisei despertar para acreditar.
Ali, no meio de toda aquela destruição, uma flor amarela subia sozinha da terra. Não havia nenhuma outra, apenas ela. Ajoelhei-me e aproximei meus olhos para vê-la. Não era artificial! Toquei-a levemente para sentir a delicadeza da pétala. Era pequena, tão frágil... Mas tão resistente! A única vida naquele lugar...
Ouvi risadas infantis novamente e olhei para trás. Uma sombra se passou, sumindo por detrás de um amontoado de terra e entulho onde antes havia um escorregador de concreto, daqueles grande onde tinha um túnel por debaixo.
- Hey! – gritei meio rouco, e só então notei que ainda tinha voz.
Minha voz soou como um eco que nunca mais terminava, misturando-se com o som agudo que estava sempre presente.
Levantei e deixei para trás a flor amarela. Se é que tinha mais alguém ali, precisava ver quem poderia ser.
Sentia dores nos pés, mas isso não impediu que eu fosse atrás do que queria descobrir. O escorregador de concreto estava rodeado de entulho, mas notei a entrada do túnel livre bem ali ao lado.
Com o resto de força que ainda tinha, corri para a meia lua que o túnel formava. Olhei ali dentro e paralisei. Aqueles olhos amendoados brilhavam com um sorriso imenso, esperançoso, inocente.
Meu peito encheu-se de dor e angustia, mas aquela crianças me presenteava com aquele sorriso generoso e iluminado. Eu tremia, ela sangrava. Não, ela chorava! Chorava sangue, mas ainda sorria.
A criança me estendeu as mãos pequenas, machucadas. Um coração pulsava entre os dedos miúdos. Assustado, olhei o pulsar e voltei os olhos do pequeno. O menino ainda sorria com seus olhos sujos de sangue. Vagarosamente, ele segurou o coração com apenas uma das mãos e, com a outra, apontou para mim.
Segui o dedo esqueleto do menino que apontava para mim e olhei para me ver. Minha camisa encardida estava suja de sangue também, um círculo na altura do peito onde deveria bater meu coração. Como num reflexo, levei a mão ao peito e só então percebi que havia um vácuo ali.
Voltei os olhos para o pequeno e ele sorriu, como se confirmando aquilo o que eu imaginava. Aquilo em suas mãos era o meu coração! Meu coração em frangalhos que eu havia abandonado, deixado ferir. Meu coração que sangrava por sentimentos fúteis, e estava destruído por mim mesmo.
Quando toquei a mão do menino e senti meu coração pulsar, vi que, na verdade, a criança era eu! Vi que aquele mundo caótico e destruído, abandonado... Tudo era eu!
Loucamente chorei e me deixei cair. Fechei os olhos e o vento aumentou, forte, frio, barulhento. Tudo o que já estava destruído parecia ruir, como se um imenso buraco estivesse se abrindo e engolindo tudo. Em seguida, a sensação de queda livre. Caindo no vazio de outro espaço, flutuando no Universo negro e brilhante. Milhões de planetas, uma explosão no infinito e tudo se iluminou.


Invadido por aquela luminescência, eu acordei. E mais um dia estava começando para ser vivido. 

À Flor da Pele... - por Thiago Assoni




Suas mãos tocaram-na com delicadeza e, pouco a pouco, ele foi abrindo cada botão da camisa social a qual ela usava. A lingerie de renda surgiu mostrando bem as curvas dos seios fartos e perfeitos da jovem. Ele mergulhou em um beijo fogoso por entre aquela pele branca e macia ao mesmo tempo em que a deixava livre do sutiã na cor da pele.
Miriam delirava de prazer, sentindo o desejo à flor da pele, arrepiada de tesão. Os lábios que lhe beijavam tão calmamente quase a deixava à beira da loucura! Há tempos não se sentia assim tão desejada! Aquele cara sabia muito bem como fazer e isso era algo notável!
Lentamente as mãos desceram pela cintura, apertando-a suavemente e levando-a para mais perto do corpo másculo dele. Ainda aos beijos, caminharam até esbararem em um móvel da sala e foi ali mesmo que ele terminou de despi-la. Gentilmente sentou-a sobre a madeira em mogno e afastou-lhe as pernas com sutileza, tanto que Miriam quase nem percebia o que se passava.
E mais uma vez ele mergulhou entre as pernas dela, sugando-a com destreza. Miriam erguia a cabeça com a boca semicerrada em um gemido que não saiu, morrendo ainda na garganta. A espinha dorsal se fez ereta e em outro instante ela se retorceu. O gemido outrora preso na traqueia escapou longo e generoso em um gozo abundante e explosivo.

Ele então se ergueu e sorriu, deslumbrando Miriam nua a sua frente. Aspirou delicado perfume daquela garota que jazia agora morta sobre o móvel da sala. Ao contrário dela, o tal homem nem ao mesmo se dera ao trabalho de tirar sua roupa, estava completamente vestido em um terno negro com gravata no mesmo tom. Arrumou o cabelo penteado para trás e saiu, tomando a noite que já ia tarde lá fora.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Neculai - O Desespero de sua alma!

Brilhantemente, Adriano Siqueira (que dispensa apresentações), criou Neculai.
Este "é uma entidade vampírica que se alimenta de sangue e desespero." - palavras do próprio autor.
Seus contos não contém narrador, acontecem durante suas ligações "fofas" com algum outro personagem...
Incherido que sou, fui me meter a criar um conto com Neculai. Sinceramente não achei que ficou tão original, mas, tratando-se de um fanfic, como poderia?

Com vocês... Neculai.


- Alô?
- Que bom que me atendeu!
- Quem é que tá falando?
- Mas veja só... Nem reconhece mais a minha voz sedutora? Ha ha ha
- Que babaca! Diz logo quem é ou eu desligo!
- Que mocinho nervoso... Fique calmo, ora essa... Pra que essa braveza toda?
- Olha aqui, ôh imbecil! Não tenho tempo pra perder não, ok?
- Que pena que é tão mal educado... Ia ganhar um prêmio se fosse mais simpático, mas vejo que vou precisar apelar contigo.
- Essa conversa já me irritou!
- Não ouse desligar, mocinho... Ha ha ha... Já esqueceu da noite de ontem?
- Quem é? É o Róger?
- Não... Mas o celular dele é recheado de bons contatos, não é mesmo?
- Você roubou o celular do meu amigo?
- Deveria se lembrar que nos levou até a casa dele. Não lembra mais, né? Bebeu tanto ontem a noite... Absinto é mesmo uma bebida dos deuses! Ainda mais quando alguém pinga algumas gotinhas de sangue nele.
- Como é que é?
- Opá... Senti um tom desesperado na sua voz? Agora eu comecei a gostar.
- Onde está o Róger?
- Morto, é claro! O que acha? Aceitar que um estranho vá até a sua casa depois de uma balada e achar que vai transar com ele? Mas foi bem divertido. Novidade pra mim... Os olhos dele brilhavam de desespero ao notar que o sangue dele enchia minha boca!
- Você deve ser um louco! Vou chamar a polícia!
- Se não largar esse telefone, vai ter o mesmo fim que seu amigo. Ha ha ha
- Você está me espionando? Como poderia saber que estava com o tele... Isso é um trote, só pode!
- Então quer ver a foto do seu amiguinho morto? É só clicar na mensagem que acabei de enviar pra você nesse aplicativo bacana que vocês usam hoje em dia... O lado bom de atender o celular no fone de ouvido é esse, não é mesmo? Consegue ver a foto e ainda falar comigo.
- Oh meu Deus! Seu cretino filho de uma puta! O que você fez com o Róger?
- Ele gemeu gostoso antes de perder a cabeça... E como você não foi simpático comigo, terá o mesmo final delicioso dele!
- Como é que é, seu maluco? Vou chamar a polícia agora mesmo.
...
- Hei! Quem é você? Como entrou aqui?
- Mas tem a memória fraca mesmo, hein garoto? Olhe em meus olhos... E me deixa sentir o desespero de sua alma!
- Sai daqui, seu monstro...
- Meu nome é Neculai... Deveria se lembrar. Ha ha ha
- Nãaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaao
- Adoro quanto tentam fugir. O sangue é sempre mais saboroso assim.
...
- Hum... Nham nham... Sangue bom esse sangue jovem... Durma bem, mocinho. E tenha uma adorável noite. Pena que tenha perdido a cabeça. Ha ha ha

por Thiago Assoni.

Leia mais sobre Neculai no blog do próprio autor:

CONTOS DE VAMPIRO E TERROR

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Conto - A mulher que me roubava o marido - por Thiago Assoni

 


Meu nome é Tereza, tenho 42 anos. Sou Funcionária Pública há vinte anos e casada há vinte e cinco. Tenho dois filhos que me enchem de orgulho por já terem metas para o futuro e por estudarem para alcançá-las. Nunca impusemos nossos desejos fracassados sobre eles, o que acho válido. Tiveram (e ainda têm) a liberdade de ser quem querem ser, não o que nunca conseguimos.
  Celso, meu marido, é advogado e trabalha numa grande construtora brasileira aqui em São Paulo. Empresa de nome conhecido, grande e importante! E Celso é um homem de caráter e de honra, nunca cedeu às corrupções que seu trabalho envolve. Já vimos muitos que caíram, envolvidos em escândalos que até foram televisionados... Mas meu marido sempre esteve entre os melhores! Seu nome nunca surgiu em listas de investigados ou envolvimentos de qualquer desses escândalos...
  Mas eu sempre desconfiei de que havia algo errado. Há muito tempo vinha notando seus sumiços repentinos, as reuniões fora de hora, viagens que não estavam previstas em nossa agenda.
  Algumas (muitas) vezes, quando marcávamos jantares em nossa casa, acabava ficando sozinha com nossos amigos convidados. Eles, claro, nunca comentavam nada sobre isso, mas eu sempre notei nos olhos de cada um deles: alguns sentiam pena, outros pareciam tirar sarro daquela detestável situação...
  E eu chorei! Muitas e muitas noites, sozinha na cama de casal vazia, eu chorei. De tristeza, de raiva! Raiva do meu marido por aquela traição, mas, principalmente, raiva de mim mesma por ser tão medíocre e covarde.
  Eu sentia dor! Durante todo tempo aquilo me doía. Imaginar que Celso estava se relacionando com alguma outra mulher, certamente uma mocinha bem mais jovem do que eu, estava me matando!
  E como eu sabia que era outra mulher? Bom, eu fiz algumas rasas investigações. Celso nunca foi muito bom em esconder coisas, pelo menos era o que eu pensava. Encontrei as faturas do cartão de crédito dele e ali estava descrita sua falta de cuidado em detalhes: nome das lojas, dia, horário e qual o produto comprado.
  Vestidos caros, roupas íntimas, objetos de sex shop... Deus! Aqueles perfumes caros e adocicados que nunca gostei, tratamentos em clínicas de beleza das quais nunca estive... Nada daquilo foi gasto comigo! Era presente para alguém, para a amante dele!
  Mas isso não ficaria assim, eu não ia deixar por menos.

***

  Certo final de semana eu acordei cedo, sozinha na minha cama, mais uma vez. Quase não consegui dormir imaginando aonde deveria estar meu marido. Fiquei virando na cama, perturbada com cenas que invadiam minha mente.
  Eu queria gritar, esmurrar as paredes, quebrar todas as coisas que visse pela frente, queimar as roupas e todas os pertences dele! Mas mantive a calma, como sempre fiz.
  Pela manhã levantei e segui meu ritual matinal normal. Arrumei nosso quarto de mentiras, preparei o café da manhã. Nossos filhos não estavam em casa, o que era bem melhor: não ia precisar sorrir enquanto meu coração estava aos pedaços!
  Sentei-me à mesa e, olhos vagos, tomei meu suco calmamente enquanto minha mente ia longe e meus dentes mastigavam a torrada integral. Aquelas imagens criadas pela minha mente entristecida teimavam em reaparecer e eu me esforçava para ignorá-las.
  Celso chegou, vindo da rua. Me sorriu com aquele sorriso amarelo, pois ele não esperava que eu já estivesse acordada e à mesa com tudo pronto ali tão cedo. Tinha o paletó jogado no braço, a camisa com botões abertos até metade do peito e, mesmo de longe, notei o batom meio borrado na boca.
  Fingindo precisar do banheiro, ele correu pelo corredor. De fato ele entrou no banheiro mesmo e bateu a porta em seguida. Ouvi água na pia. Ele queria tentar esconder as evidências, é claro.
  Quando voltou para a cozinha onde eu estava, Celso beijou meus cabelos e disse estar cansado, que tentou me ligar na noite anterior tão logo a reunião acabara, mas que não tinha conseguido. Eu sabia que era mentira, é óbvio, mas menti também: disse que tinha ido dormi cedo e talvez não escutara mesmo o telefone tocar quando, na verdade, eu quase nem conseguira dormir.
  Ele disse que ia tomar um banho, pois tinha dormido em um hotel lá pelo centro mesmo por achar perigoso voltar já tão tarde da noite. Disse ainda que alguns dos acionistas convidaram-no para um drink em um bar lá e, enquanto falava comigo, ia caminhando para o quarto.
  Ah, aquele cheiro doce ainda estava nele. Filho de uma grande puta, que me desculpe a mãe dele. Mentia com a maior cara lavada do universo! Passou a noite comendo a amante e vem tentar me convencer de que estava com acionistas em um bar falando sobre como o dólar oscilava e como estava difícil a situação econômica do País na no momento atual... Sei.
  Eu estava louca, em nervos! Ergui-me e fui até o quarto. Celso não estava mais lá, já estava no banho, mas havia deixado a maleta e as roupas sobre a cama. Outra grande falha de um mentiroso que não sabe sustentar suas mentiras.
  O cheiro quase sumia, mas o perfume ainda estava no paletó. Apertei o tecido com força, controlando-me para não entrar naquele banheiro e matá-lo com minhas próprias mãos!
  Foi quando senti algo no bolso e logo procurei para saber do que se tratava. Puxei um pequeno cartão de acesso do que parecia ser algum tipo de boate. Era como um cartão qualquer para destravar catracas de edifícios feito o que ele trabalha, mas havia outro nome ali. Antonieta. Então era essa minha rival? Antonieta?
  Anotei o nome da casa de shows libertinos e fui para o computador em busca de informações. Boate Luz Neon, avenida São João, centro de São Paulo. Só abria nas sextas, sábados e domingos. Ótimo! Eu ia atrás dele na próxima sexta-feira...

***

  Não falei nada pra ninguém naquela noite de sexta-feira, apenas disse aos meus filhos que ia sair sem hora certa pra voltar. Liguei para o Celso e disse que sairia com umas amigas do tempo de escola e, como nota mental, pensei: aquelas que sempre marcavam festas e eu nunca ia pra não deixar faltar a presença de esposa dentro de casa, a mãe exemplar e muito menos deixar faltar a janta e tudo arrumado para você!
  Sem fazer perguntas, ele disse que tudo bem e que talvez precisasse ficar até mais tarde no escritório, pois um caso muito importante e rentoso estava prestes a ser concluído. Disse até que, talvez, nem voltasse para casa e ficasse lá pelo centro mesmo.
  Mas é claro que ficaria... Eu sei que ficaria, pois iria encontrar a tal Antonieta na Boate Luz Neon, não é mesmo? Canalha! Que ódio que eu sentia. Precisei parar o carro diversas vezes durante o caminho, pois de tão nervosa, eu tremia incontrolavelmente.
  Milhares de coisas se passavam na minha mente desvairada enquanto dirigia. Qual seria minha reação ao encontrá-lo com a vagabunda da amante dele? E qual seria a reação dele ao me ver chegando e pegando-o com outra? Será que a amante sabia que ele era casado?

***

  A Boate Luz Neon fazia jus ao nome, pois toda sua faixada era de neon e o nome piscava de vez em vez. Era um prédio antigo, dois andares, com sacadas de portas fechadas lá em cima.
  Estacionei do outro lado da rua e, com cuidado, atravessei. Respirei fundo e me aproximei da entrada. Dois rapazes muito altos me olharam com seus rostos sérios e carrancudos, deram espaço e entrei.
  Uma moça sorridente me recebeu no que parecia ser uma recepção e perguntou se eu tinha o nome na lista ou se iria comprar a entrada. Notei um olhar meio interrogativo, como quem diz: "o que a senhora faz aqui?", mas paguei a entrada e a mocinha estendeu a cortina de veludo atrás dela.
  Adentrei o salão...
  O chão era revestido por um carpete vermelho já bem gasto, as paredes de madeira lustradas não brilhavam devido à iluminação fraca e proposital do ambiente, o que ocultava os clientes. Havia muitas mesas arredondadas e quase todas ocupadas.
  Logo quando entrei vi, ao lado, um bar bem decorado com quadros antigos e uma vitrola de onde saía um tango eletrônico que escapa por uma extensão de caixas de som espalhadas pela Boate. Lá nos fundos, identifiquei um palco com cortinas ainda fechadas.
  Discreta e calmamente, sentei em uma cadeira de uma das (poucas) mesas vazias. Tentei olhar aos lados e encontrar meu marido, mas não seria tão fácil enxergar. Não podia dar bandeira, precisava me manter calma e observar com cautela para encontrar o Celso.
  O garçom chegou e ficou surpreso ao me ver. Novamente aquele olhar curioso e notei um sorriso diferente no rosto dele. Pedi conhaque, dose dupla. Após anotar meu pedido, ele me olhou daquele jeito estranho mais uma vez e saiu.
  Odiei estar ali, queria ir embora logo e quase levantei para sair. Mas algo dentro de mim gritava para que eu ficasse, quase como uma ordem. Eu precisava acabar com aquela angústia, precisava desmascarar meu marido e ver quem era a tal de Antonieta. Não ia continuar sendo enganada! Ele não poderia continuar com aquela vadia, não ia ficar me traindo com uma vagabunda de boate!
  Mais uma vez olhei aos lados e tentei encontrar o Celso. Será que ele chegaria um pouco mais tarde ou já teria ido embora com a pilantra da prostituta dele?
  O garçom trouxe meu conhaque e deixou o copo sobre a mesa. Quase não notei, mas tão logo o vi, peguei o copo e bebi rápido demais. Não sou acostumada a beber e senti minha garganta arder. Quase posso jurar que já me sentia embriagada, mas claro que não podia ser.
  Três conhaques e mais um set-list de electro-tango depois, eu estava quase desistindo de me encontrar com o Celso ali na Boate Luz Neon. Estava cansada, triste, arrasada... Quando levantei, precisei sentar de novo. O mundo girou e senti minhas pernas não responderem meus comandos. Apoiei a cabeça nos braços deitados sobre a mesa e respirei fundo.
  De repente a música parou e ouvi um rapaz ao microfone. Levantei lentamente a cabeça para observar o que estava acontecendo. As luzes do palco se acenderam rápido demais, ofuscando minha visão e demorou até notar que um espetáculo estava começando.
  - Com vocês: Antonieta!
  Ah, então chegou a bendita - ou maldita - hora de conhecer a minha rival. Aquele filho de uma grande puta deveria estar no camarim até agora e, talvez, estivesse assistindo tudo ali de trás do palco. Olhei ao lados para ver se ele, por um acaso, não estava em algum lugar por ali no bar agora que já tinha desejado "boa sorte" para sua amante.
  No palco, a música começou. Como não poderia deixar de ser: um electrotango. As luzes piscaram e a figura de vestido vermelho e bem decotado surgiu sozinha. Sempre imaginei que dançar tango deveria ser em par, mas, pelo visto, esta Antonieta sabia mesmo ser bem peculiar.
  Durante toda a introdução da música, ela ficou de costas. Deu passos sensuais até o centro do palco e virou-se. Notei seu rosto, a maquiagem bonita. Um ser andrógino e só então notei que não havia uma vasta cabeleira negra como era costume das dançarinas de tango. As curvas bem torneadas do corpo bem feito também não eram tão delicadas, mas ela era linda! Tão graciosa, tão lindamente performática...
  Dançou, enfim, ainda sozinha, com passos graciosos. A leveza impar, movimentos soltos, olhar marcante. A flor estava na boca, como deveria estar no companheiro invisível; um colar de pérolas enrolava-se no pulso escondido por luva preta, a perna grossa em meias pretas rendadas...
  Antonieta era mesmo alguém que chamava atenção, que arrancava suspiros, fazia brilhar os olhos! Era formosa, era graciosa, delicada, linda...
  E isso me deixou perturbada! Eu estava olhando, mas não acreditava. Então era isso, por essa razão aquelas reuniões fora de hora existiam. Ele realmente estava me traindo com ela, com a Antonieta! As faturas que descreviam as compras estavam corretas e jogavam-me na cara algo que nunca quis notar...
  Céus! Não poderia eu ser tão cega, poderia? Como deixei passar algo assim? Ele estava me traindo, ele tinha outra... Mas como crer no que meus olhos me mostravam? Lá estava ela, lá estava minha rival.
  A mulher que me roubava o marido era Antonieta...
  E Antonieta era meu marido!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Conto - O Malandro e a Prostituta

 


A lua cheia reinava no céu negro daquela noite razoavelmente quente, mas com brisa suave o bastante para refrescar os transeuntes na Região do Arco da Lapa, no Rio de Janeiro.
  A roda de samba ecoava já ao longe enquanto ele caminhava de jeito maroto, pés dançantes com gingado e molejo invejáveis. Os sapatos brancos sapateavam nos paralelepípedos polidos daquela rua.
  Os sapatos combinavam com o terno, também inteiramente branco, tal como o chapéu branco com faixa vermelha e a bengala que trazia pendurada no antebraço.
  Era encantador! Alto, corpo forte. Um negro cheio de beleza!
  Fumava um cigarro que já chegava ao fim. Parou bem embaixo de um dos arcos e apagou o cigarro na sola do sapato, jogando a bituca num amontoado de lixo que havia ali.
  Um pouco mais adiante, estava um grupo de mulheres. Eram prostitutas lindas, seios fartos, pouca roupa. Ele gostava disso! O cheiro doce do perfume que se misturava com a cachaça barata e a erva que fumavam.
  Mas havia ela, a que mais lhe chamou atenção. Os cabelos longos, encaracolados, cheios de volume e com tom avermelhado. Os brincos de argola dourados, o batom que fazia os lábios grandes brilharem.
  Era uma mulata linda, cheia de volúpia, exalando luxuria. Mesmo o homem sem a menor intenção de pagar por sexo se enfeitiçaria.
  - O que faz um negão gostoso desse perdido por essas bandas?
  A mulata ruiva virou-se para ele, com as mãos nas ancas enormes, a saia preta colada nas pernas grossas. Mascava chicletes de sabor hortelã, dava pra sentir o cheiro. E o cheiro do perfume doce que deixava o malandro excitado.
  Ah, que maravilhosa era aquela cidade! Sim, o Rio de Janeiro continua lindo! E com belas garotas!
  - Vim desfrutar das belezas do Rio... – ele sorriu com os dentes perfeitos e alvos. – E já começamos muito bem nossa noite!
  A ruiva se agitou, caminhando até o Malandro de chapéu e terno brancos. Ele deveria ter mais do que um metro e oitenta de altura.
  - Sim... Começamos, pelo visto.
  O sorriso que brotou no rosto do malandro encheu a noite escura. A ruiva retribuiu o sorriso e enlaçou-se no braço de terno alinhado e bem passado.
  - E para onde vamos? – ela perguntou.
  - Preciso beber uma dose antes. – ele olhou fixamente para a moça de roupas curtas e belas curvas. – Me acompanha?
  As outras meninas sorriram e se manifestaram com risadinhas estridentes enquanto a amiga ruiva seguia o caminho do malandro dançante. Havia algo de muito envolvente naquele negro bonito.
  Seguiram pelas ruas iluminadas pela lua e os postes alto de ferro e luz amarelada. Ouvia-se o samba mais próximo agora.
  Palmas, batuque, pandeiro e cavaquinho. Lá ia o malandro cheio de ginga e requebrado másculo. Sambava como poucos ali presentes.
  De repente, o bar todo estava de olhos grudados no negro vestido de branco. O chapéu não ousava cair e os sapatos pareciam se mover sozinhos.
  O céu parecia mais contente e sorridente com o samba genuíno do Malandro. As nuvens deram lugar à lua cheia e as estrelas se aproximaram para assistir a magia do negro que saudava a Cidade Maravilhosa.
  O Malandro atirou a bengala para a Ruiva, que segurou com exatidão ainda no ar. O negro caminhou até mais perto dos sambistas.
  Curvou-se, sorridente, e tirou o chapéu, saudando a todos, em forma de agradecimento pelo som. Quando o colocou de volta, continuou sambando, fazendo a rua se encher.
  As pessoas se achegavam, atraídas pelo molejo do negro que sambava feliz.
  Enfim, o Malandro parou. Colocou o chapéu de lado, afrouxou a graveta vermelha e abriu os botões do terno. Estendeu o braço para a Ruiva, convidando-a para dançar. Ela sorriu, colocando a bengala apoiada sobre uma cadeira, pedindo para a moça ali sentada cuidar do objeto formoso.
  A Ruiva jogou os cabelos para trás, ajeitou as roupas curtas e foi se requebrando até o malandro que mantinha o braço esticado para sua dama. Quando se achegou, segurou-lhe a mão grande e foi puxada para junto do negro que tinha um perfume forte e inebriante.
  Os corpos juntos e os passos bem ritmados, como se ensaiados há tempos. Sorriam e dançavam, o suor brotando na testa.
  Os sambistas aumentaram a velocidade do batuque, assim como o casal aumentava a velocidade da dança.
  Soltaram-se, o Malandro indo até a mesa e pegando um copo de cerveja, bebendo-o em um gole só e agradecendo o dono da mesa. A ruiva foi para o outro lado, girando suavemente, os cabelos livres no ar.
  O bondinho passou no alto dos Arcos e a Ruiva se distraiu por um momento, quando um senhor de bigodes protuberantes se aproximou, passando o braço pela cintura da moça e sussurrando-lhe ao ouvido.
  - Tú é gostosa, mulher...
  A mulher sorriu, envaidecida. Do outro lado, o Malandro observou a cena e continuou sambando, mas agora estava mais sério. Olhava o homem parrudo que dançava junto da ruiva. Balançava os ombros, olhos injetados.
  O maior erro do rapaz parrudo e bigodudo foi tentar beijar a mulher do malandro de branco. A ruiva tentava se esquivar, enquanto o parrudo a apertava contra o corpo.
  Com suavidade, o Malandro de terno branco sorriu e atirou o palito de madeira que pegara outrora para bem longe. Aproximou-se e disse:
  - Larga ela!
  O Parrudo olhou-o com desdém. Eram os dois homens grandes. Não teria por que o Parrudo temer o Malandro.
  - Ou se não...?
  Era o que o Malandro esperava ouvir.
  Puxou a faca da bainha presa ao cinto e o batuque morreu nesse momento. O Parrudo jogou a Ruiva de lado, que quase caiu, não fosse a ajuda da moça que antes segurara a bengala.
  O Malandro manejava a faca com tamanha destreza que o Parrudo quase vacilou. Mas não queria largar uma boa briga com o Negro vestido de branco.
  Agora, era questão de honra quebrar a cara daquele Mané de chapéu branco.
  - Escolheu a pessoa errada pra brigar, Mané... – disse o Parrudo, matando uma dose de aguardente de uma só vez. – Escolheu morrer essa noite.
  A Ruiva tentou intervir, mas o Malandro esticou a mão, indicando para ficar onde estava.
  Tirou o chapéu branco com a faixa vermelha e pousou-o na mesa, ao lado do copo de cerveja que bebia. Esticou a manga do terno e jogou-o para trás do corpo, mostrando o cinto que prendia a calça. O Oxford lustrado brilhava como a lua.
  - Já levei chumbo de espingarda, navalhada de outro Zé... – o negro sorriu. – Acha que vai fazer o que comigo?
  O Parrudo quebrou uma garrafa, assustando os que estavam na mesa ao lado, e investiu contra o Malandro, que desviou com destreza. O Parrudo ainda tentou mais duas vezes, sem sucesso em nenhuma delas.
  O resto de garrafa foi para o chão e o Parrudo virou-se com rapidez, certo de que acertaria o Malandro com um soco, mas acertou apenas o ar. Sentiu uma dor lancinante na costela e perdeu os movimentos, caindo no chão de paralelepípedo.
  O Malandro limpou a faca no lenço que levava no bolso do terno e jogou o mesmo sobre o corpo do Parrudo desmaiado.
  Olhou com pesar para a Ruiva, que levara as mãos à boca, assustada com a cena. Não queria que as coisas tomassem esse rumo, mas fora preciso.
  Com olhos tristes e sorriso morto, o Malandro se curvou para os que estavam no bar. Pegou o chapéu da mesa, guardou a faca na bainha, fechou o terno e se ajeitou.
  - Boa noite pra quem é de boa noite...
  Ao olhar para o céu, o Malandro viu um risco alaranjado tingindo o firmamento.
  - E bom dia pra quem é de bom dia...
  E assim, ele se foi.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Conto - Diamante de Gelo - por Thiago Assoni

 

  Abri os olhos e notei que nada, à partir daquele instante, jamais seria como antes.
  O Inferno não é quente como sempre me fizeram acreditar. Não existe nenhum Vale Sombrio onde almas vagam clamando por salvação e, talvez o mais decepcionante:o Diabo não estava lá ostentando seu tridente a minha espera.
  Era como estar em um enorme campo de neve na Sibéria e tudo estava tão deserto quanto acredito ser no Saara.
  Sentia frio e a claridade ofuscava minha visão. Era tudo de uma brancura insuportável, nada de escuridão eterna!
  Minhas pernas pesavam mais do que eu me lembrava e havia uma fumaça densa que se desprendia do chão, dificultando ainda mais minha visão.
  Apesar de não conseguir ver nada além de uns dez metros, notei algo estranho acontecer na imensidão negra que era o céu acima de mim.
 
Uma dança hipnótica de vermelho, verde e lilás. Ainda que incrivelmente estranho, aquilo me fascinava! Era lindo! Mesmo nunca tendo presenciado aquele evento, afirmo ter visto a Aurora Boreal.  

 Continuei com minha caminhada incerta, quando senti pequena elevação adiante, naquele terreno fofo. Mas era só um presságio de uma imensa parede de gelo que subia íngreme.
  Olhei bem para o alto: eu não ia conseguir subir aquilo tudo. Em um dado momento, a subida ficava quase que totalmente na vertical.
  Toquei aquele gigantesco diamante gelado e, assustadoramente, pouco a pouco, ele enegreceu. Apenas o cume parecia ainda intacto.
   Mas o pior estava por vir...
   O chão estremeceu e ouvi o som do que parecia ser pedras rolando, ainda que não visse pedra alguma. E vi o cume rachar em três partes. Das frestas vi raios violetas subirem ao céu.
   Um vento forte ergueu a neve e agora não pude ver mais nada que não fosse a luminescência lilás que ficava cada vez mais intensa.
   Logo os raios se fizeram ouvir, mas em nada aquilo se assemelhava a trovões. Era como ouvir a eletricidade que emanava das bobinas de Tesla!
  A luminescência tomou todo o céu e era como ver a Aurora Boreal ser puxada, tragada para dentro da pirâmide de gelo.
  E com outro tremor de terra, tudo se aquietou. Eu estava atirado ao chão por não conseguir me equilibrar mais após o brusco movimento das tais placas tectônicas.
  Com o silêncio, a neve também se acalmou e o vento cessou. Vagarosamente pude deslumbrar o local ao qual eu habitava e pensei se não era melhor ter continuado com o véu da ignorância em meus olhos...
  Meu corpo estremeceu incontrolável ao ver aquela cena tão bizarra e horrenda se desenrolar no cume da pirâmide gélida e, outrora, translúcida. Vi Seres de crânios alongados na parte da nuca planando calmamente até tocar o chão tão levemente como uma pluma. Um a uma e mais de cem estavam vindo.
  Eu não conseguia ver seus olhos, pois a luminescência que antes tomava os céus, agora estava bem ao centro de suas testas. Mas eles não eram como os e.t's que que costumamos ver nos filmes. Eram até que bem normais, não fosse o formato craniano mais alongado.
  Os céus pareciam se contorcer em algum canto do Universo e um som estranho ecoava por todos os lados, reverberando em todos os cantos daquele deserto gelado. Era como ouvir o mau contato de uma caixa acústica se repetir continuamente, agudo e e bem ruidoso, quase irritante demais.
  As trombetas apocalípticas não silenciavam e os Seres da pirâmide seguiam para um lugar contrário ao qual eu estava.
  Quando algum tempo se passou e notei não haver mais ninguém saindo do cume da pirâmide de gelo, suspirei aliviado por achar que tudo havia acabado. Então levantei lentamente e senti o frio congelante, por mais redundante que isso possa parecer. Nem ao menos tive tempo para fazer qualquer outra coisa e vi o triângulo girar alto em seu próprio eixo, destruindo por completo aquele diamante negro congelado abaixo de si.
  Um vento ainda mais frio parecia cortar meu rosto e senti alguns pedaços de gelo me acertarem. Outra nuvem branca e pior do que a anterior se ergueu e dificultou minha visão mais uma vez.
   E tudo recomeçou: um grande tremou e a luminescência lilás se fez presente, agora mais branda.
   Ainda que eu sentisse minhas pernas pesadas, tentei correr. Mas foi totalmente inútil! Rolei ao encontrar um obstáculo e fiquei sem saber para onde ir quando atirado no chão novamente. Tentei me arrastar pela neve, mas não havia sustentação para me ajudar a projetar o corpo para frente.
   Fiquei caído ali, sem conseguir mais me mover e foi quando aconteceu: eu senti o chão sumir aos poucos, cada vez mais distantes das minhas mãos. Eu tentava me mexer, agarrar alguma coisa que me mantivesse no chão, mas toda tentativa era vã. Meu corpo não obedecia a nenhum comando!
   Estava sendo levado pelo cume triangular, arrastado aos céus pela luminescência violeta. Abduzido pelo que restara da pirâmide de gelo. Tentei gritar, sem ao menos saber se seria ouvido, mas até mesmo minha voz me traia no silêncio assustador que se seguiu.
  E de repente, tudo escureceu e o mundo que um dia eu havia conhecido se transformou em nada.
  Todo o resto foi apagado de minha mente após aquele momento e eu deixei de existir.